A partir de 2016 presenciamos no Brasil uma escalada de estados alterando suas legislações para instituírem alíquotas progressivas do Imposto sobre Heranças e Doações, o ITCMD. Até 2014, das 27 unidades federadas, apenas três utilizavam-se das alíquotas progressivas. Já para o ano de 2018, treze estados-membros passaram a adotar a progressividade das alíquotas. No fim de 2020 [1], pelo menos 15 estados, além do Distrito Federal, tinham elevado as alíquotas do imposto.
É fato que essa medida foi possível pela importante mudança jurisprudencial do STF sobre a matéria. A discussão que perdurou por mais de duas décadas no tribunal constitucional foi a interpretação do princípio da capacidade contributiva aplicada aos impostos de natureza real. O entendimento vigente era da impossibilidade de os estados instituírem alíquotas progressivas do ITCMD, pois violaria o princípio da capacidade contributiva. No entanto, por ocasião da conclusão do julgamento pelo pleno do RE 562.045, por maioria, os ministros entenderam que a lei gaúcha instituidora da progressividade do ITCMD não seria inconstitucional.
A questão é que o Estado do Rio de Janeiro ignorou a ratio decidendi do caso paradigma (RE 562.045) e,ao invés de permitir que os contribuintes calculem o ITCMD a recolher utilizando-se das faixas de progressão ? como aliás é o que ressai da Lei fluminense 7.174/2015 ? o faz calculando o percentual indicado na faixa de incidência sobre toda a base de cálculo. Explicarei melhor adiante.
Hoje as alíquotas do Estado do Rio de Janeiro incidentes sobre heranças e doações são as seguintes:
Logo, considerando as faixas progressivas previstas, no caso de doação ou herança de um bem avaliado em 1 milhão de reais, por exemplo, deveria o contribuinte recolher o montante de R$ 49.439,90:
No entanto, ao se fazer o cálculo do valor no Portal da Secretaria Estadual de Fazenda [2], o montante a que se chega de ITCMD a ser recolhido é de R$ 60 mil. Ou seja, simplesmente a Sefaz atribui a alíquota prevista para a faixa (no nosso exemplo, base de cálculo de 1 milhão estaria na faixa de 6%) por toda a base de cálculo. Essa prática da Sefaz causa uma diferença de 21,4% em prejuízo do contribuinte fluminense.
E por que a forma de cálculo praticada pela Sefaz/RJ é inconstitucional? Para responder a essa pergunta, devemos destrinchar a guinada jurisprudencial no âmbito do STF que permitiu a instituição da progressividade da tributação da herança pelos estados.
A progressividade das alíquotas do imposto sobre heranças e doações sempre encontrou óbice no entendimento da Supremo Tribunal Federal. Em função da clássica distinção entre impostos reais e pessoais, a interpretação dominante afastava essa possibilidade.
Um imposto real é aquele cuja hipótese de incidência descreve um fato que independe de qualquer aspecto pessoal do sujeito passivo, tal como o imposto sobre a propriedade urbana (IPTU), ou transmissão de imóveis inter vivos (ITBI). O imposto pessoal, por sua vez, incide sobre qualidades e fatos individuais do sujeito passivo tributário, de maneira que é possível atribuir características diferentes de acordo com os aspectos pessoais dos contribuintes, onde seria mais evidente a capacidade contributiva do indivíduo, viabilizando a adoção de alíquotas progressivas [3].
Sob essa diferenciação, somente nos impostos pessoais o sujeito passivo revelaria sua capacidade contributiva, permitindo a adoção da progressividade sem agressão ao postulado constitucional da isonomia. Nos impostos reais, incidentes sob bens considerados na sua objetividade, sem levar em conta a condição pessoal do contribuinte do imposto, a implementação de alíquotas progressivas esbarraria no § 1º do artigo 145 da CF/88.
A lei nº 8.821, de 1989, do Estado do Rio Grande do Sul instaurou a polêmica quando alterou o critério de cobrança do ITCMD, que até então era de alíquota fixa de 4%, para uma alíquota progressiva que variava de 1 a 8% conforme o valor da herança.
O leading case que abriu a mutação jurisprudencial no STF teve como origem uma decisão nos autos de um inventário que tramitou na Comarca de Porto Alegre/RS. O caso chegou no no STF tombado sob o nº RE 562.045. O relator designado Ricardo Lewandowski submeteu ao STF sua manifestação no sentido da repercussão geral do tema constitucional debatido no respectivo RE, tendo sida acolhida. O STF iniciou então o julgamento em junho de 2008 e conclui-o em fevereiro de 2013. A questão gravitou em torno da interpretação a ser conferida ao artigo 145, §1ºda Constituição Federal, a saber:
“Artigo 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: (…)
§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”
O relator ministro Ricardo Lewandowski citou precedentes do STF, em especial o RE 153.771/MG, que tratou da progressividade do IPTU e o RE 234.105/SP, sobre a progressividade do ITBI. Informou ainda que sobre a progressividade do ITCMD existiam algumas decisões monocráticas em sentido divergente, tal qual a do RE 563.261/RS, em que o ministro Marco Aurélio considerou constitucional a progressividade do tributo em questão, e a do AI 581.154/PE, em que o ministro Sepúlveda Pertence concluiu pela inconstitucionalidade da progressividade desse mesmo imposto.
Fiel à então predominante interpretação da Corte no que se refere à progressividade dos impostos reais, para o citado relator, a locução “sempre que possível os impostos serão graduados”, constante no dispositivo constitucional sob análise, está umbilicalmente ligada à expressão “capacidade econômica do contribuinte”. Assim o citado ministro Exemplifica o seu raciocínio:
“Nada se pode afirmar, à evidência, quanto à capacidade econômica daquele que recebe uma herança, um legado ou uma doação, ainda que de grande valor, apenas em razão de tal circunstância. É possível, até que haja, em certos casos, um incremento em seu patrimônio, mas não se mostra razoável chegar-se a qualquer conclusão quanto à respectiva condição financeira apenas por presunção. Basta verificar que, por vezes, uma pessoa abastada herda algo de pequeno valor, ao passo que alguém de posses modestas é aquinhoado com bens de considerável expressão econômica […]”
Foi o ministro Eros Grau que elaborou um voto-vista discordante dando provimento ao Recurso Extraordinário. Em nova interpretação do referido dispositivo constitucional, defendeu o ministro que o seu texto não limita a progressividade apenas aos impostos pessoais. Do contrário, trata-se de um dever ser, no sentido de que sempre que possível, os impostos devem levar em conta a capacidade contributiva do contribuinte, como corolário do princípio da igualdade. Vejamos:
“6. O que a Constituição diz que os impostos, sempre que possível, deverão ter caráter pessoal. A Constituição prescreve, afirma um dever ser: os impostos deverão ter caráter pessoal sempre que possível. E, mais, diz que os impostos, todos eles, sempre que possível serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte.
7. Há duas sentenças aí: (1) terem caráter pessoal e (2) serem graduados, os impostos, segundo a capacidade econômica do contribuinte. Sempre que possível. Assim devem ser os impostos.
8. Permitam-me insistir neste pon o § 1º do artigo 145 da Constituição determina como devem ser os impostos, todos eles. Não somente como devem ser alguns deles. Não apenas como devem ser os impostos dotados de caráter pessoal. Isso é nítido. Nítido como a luz solar passando através de um cristal, bem polido.”
E encerra dando provimento ao recurso extraordinário, para declarar constitucional o disposto no artigo 18 da Lei nº 8.821/89 do Estado do Rio Grande do Sul. Acompanharam a divergência instaurada pelo ministro Eros Grau os ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Carlos Britto, Ellen Gracie, Teori Zavascki, Gilmar Mendes e Celso de Mello. O ministro Marco Aurélio acompanhou o relator para negar provimento ao recurso.
Dirá o Fisco do Estado do Rio de Janeiro, caso confrontado, que a progressividade que ITCMD que deve ser praticada seria aquela que a doutrina cunhou de “simples” ao invés da graduada.
Por progressividade simples entende-se que o imposto é calculado verificando-se qual é a alíquota correspondente na tabela escalonada de acordo com a base de cálculo. Já a progressividade gradual é a forma pela qual calcula-se o Imposto de Renda da pessoa física (IRPF), onde as alíquotas se aplicarão faixa por faixa. Leandro Paulsen [4] leciona de forma didática da seguinte forma:
“A progressividade pode ser simples ou gradual. Na progressividade simples, verifica-se a alíquota correspondente ao seu parâmetro de variação (normalmente a base de cálculo) e procede-se ao cálculo do tributo, obtendo o montante devido. Na progressividade gradual, por sua vez, há várias faixas de alíquota aplicáveis para os diversos contribuintes relativamente à parcela das suas revelações de riquezas que se enquadrem nas respectivas faixas. Assim, o contribuinte que revelar riqueza aquém do limite da primeira faixa, submeter-se-á à respectiva alíquota, e o que dela extrapolar se submeterá parcialmente à alíquota inicial e, quanto ao que desbordou do patamar de referência, à alíquota superior e assim por diante. Na progressividade gradual, portanto, as diversas alíquotas são aplicadas mediante a determinação da aplicação da alíquota da maior faixa e de deduções correspondentes à diferença entre tal alíquota e as inferiores quanto às respectivas faixas. Há quem entenda que somente a progressividade gradual seria autorizada, porquanto a progressividade simples poderia levar a injustiças” (p. 154, grifo do autor).
No entanto, no que se refere ao ITCMD a progressividade que deve ser implementada é a gradual, pois é a que melhor respeita a capacidade econômica do contribuinte, comando dado pelo Constituinte para a instituição do Sistema Tributário Nacional.
A progressividade simples, que despreza a capacidade contributiva do indivíduo, no que se refere aos impostos reais, só é admitida quando existir expressa autorização no texto constitucional e para dar concretude aos efeitos extrafiscais desejados pelo constituinte.
Podemos citar como exemplos o artigo 153, § 4º, I, quanto ao Imposto sobre Propriedade Territorial Rural (ITR,) como forma de desestimular a manutenção de propriedades improdutivas; no artigo 156, § 1º, I, relativamente ao IPTU, como faculdade, conferida ao legislador municipal, de estabelecer a progressividade com base no valor do imóvel para desestimular manutenção de terrenos para fins meramente especulativos; no artigo 182, § 4º, II, também quanto ao IPTU, sob a modalidade de progressividade no tempo, como instrumento de política urbanística, objetivando assegurar o cumprimento da função social da propriedade.
Já a progressividade do ITCMD está fundada no parágrafo primeiro do artigo 145 da Constituição Federal, que é o mesmíssimo fundamento da forma de cálculo da tabela progressiva do IRPF. Ora, o fato de o IRPF ser calculado de forma gradativa de acordo com suas alíquotas ? e não de forma simples ? não é um favor do Fisco, mas uma imposição da Carta Magna. Demais estados, como Santa Catarina [5], respeitam o precedente do STF e o cálculo das alíquotas progressivas do seu ITCMD é feita de forma gradual.
A forma de cálculo do ITCMD praticada pelo Fisco fluminense atenta ainda contra o § 1º do artigo 145 da CF/88 pois na verdade aplica, no exemplo de cálculo citado no início desse artigo, a alíquota de 6% sobre bases de cálculo que o legislador previu alíquotas de 4%, 4,5% e 5%, desvirtuando dessa forma a capacidade econômica do contribuinte.
Portanto, considerando que prevaleceu no Supremo Tribunal Federal, em repercussão geral, que o fundamento para a progressividade do ITCMD está no parágrafo primeiro do artigo 145 da Constituição Federal, não há espaço para a adoção da forma de cálculo do ITCMD perpetrada pelo fisco do Estado do Rio de Janeiro.
Por: Rogério David em 18.06.2021
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[3] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª ed. 12ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 141, 142
[4] Curso de direito tributário . 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2017 p. 153.
[5] https://www.tabelionatoportobelo.com.br/aprenda-a-calcular-o-itcmd-de-santa-catarina