Em 2013, o universo da integridade transpassou os limites da ética corporativa privada, até então quase autorregulada, e, com a promulgação da Lei nº 12.846/13 (Lei Anticorrupção), acessou as segunda e terceira gerações de compliance de uma vez só. Esse avanço resultou na difusão de programas de integridade e sua repercussão foi similar ao que acontece hoje com a LGPD (Lei nº 13.709/18). Naquele momento, as empresas buscavam se adaptar à nova lei com a intenção de evitarem condenações severas que poderiam chegar a multas de 20% sobre o seu faturamento bruto anual no ano anterior (artigo 6º, I, da Lei nº 12.846/13).
Na verdade, essa profusão de demandas pela criação e implementação de programas de integridade somente aconteceu após a regulamentação da Lei Anticorrupção pelo Decreto nº 8.420 [1], em 2015, pois apenas a partir dela a responsabilização objetiva das empresas foi definitivamente regulamentada e pôde ser exigida das pessoas jurídicas na prática (artigo 2º da Lei nº 12.846/13, c/c artigo 2º e seguintes do Decreto nº 8.420/15).
Segundo o Cadastro Nacional de Pessoas Punidas (CNEP) [2] — portal de dados fornecido pelo Ministério da Transparência (antiga CGU) —, desde a sua promulgação até a presente data, 356 penalidades foram aplicadas com base na Lei nº 12.846/13, entre as quais: 217 multas administrativas (artigo 6º, I); 125 publicações extraordinárias da decisão condenatória (artigo 6º, II); 13 suspensões ou interdições parciais das atividades da pessoa jurídica (artigo 19, II); e duas proibições de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público (artigo 19, IV).
Se quiser uma métrica financeira, as penas chegaram a R$ 5.778.196.180,38 em multas administrativas, sem contabilizar os demais dispêndios decorrentes dos prejuízos reputacionais que, certamente, impactaram na comercialização da marca e afugentaram os investidores, sobretudo, diante da redução imediata do chamado ROI (retorno sobre o investimento), bem como da perda de ativos potenciais advindos das relações comerciais que poderiam ter sido celebradas com bancos públicos, por exemplo.
Nessa toada, muitos estados e municípios vêm paulatinamente regulamentando a Lei Anticorrupção em seus territórios [3] , o que enseja ainda mais responsabilizações por atos lesivos (artigo 5º). Até agosto de 2019, 19 estados e 39 municípios regulamentaram a Lei nº 12.846/13, tais como o Decreto Estadual nº 46.366/18, no Rio de Janeiro, o Decreto Estadual nº 3.956-R/16, no Espírito Santo, e o Decreto Municipal nº 16.522/15, em Vitória.
Ressalta-se que o destaque feito ao Espirito Santo não é aleatório, mas porque os números comprovam o seu pioneirismo no combate à corrupção. Esse é o estado que, pelo menos até 2018, instaurou o maior número de PARs (processos administrativos de responsabilização) — 38 — e processou o maior número de pessoas jurídicas, 60 empresas de um total de 177 das processadas até aquele ano — o que representa 33,9%.
Portanto, é nítido que esses números estão aumentando exponencialmente ao redor do país, mas esse não é o tema mais precioso para você que pretende participar de contratações com o setor público. Preste atenção na tendência legislativa que, certamente, veio para ficar.
Como reflexo da Lei nº 12.846/13, normas em âmbito federal, estadual, distrital e municipal reforçaram o comprometimento preventivo no combate à corrupção ao exigirem, em determinadas contratações, a implementação de programas de integridade, são exemplos disso: a Lei nº 6.112/18 [4] do Distrito Federal, as Leis estaduais do Rio de Janeiro nº 7.753/17 [5] e do Rio Grande do Sul nº 15.228/18 [6], a Lei municipal nº 6.050/18 [7], de Vila Velha (ES) e, mais recentemente, a nova Lei Geral de Licitações (NLGL — Lei nº 14.133/21[8]).
Sobre essa última, verifica-se de seu artigo 25, §4º, que é obrigatória a implementação de programas de integridade em contratações de “grande vulto”, logo exige-se da licitante vencedora que efetive o seu programa de integridade em até seis meses a partir da celebração do contrato, id est, que ela elabore um código de conduta, se organize internamente com estruturas de controle, defina instância responsável pelo compliance, prepare a alta administração, redija políticas e as atualize constantemente, faça a análise de riscos das operações, sejam elas fusões, aquisições, meras contratações de fornecedores parceiros, entre outros tantos requisitos inseridos no universo da integridade.
Embora a regulamentação [9] da Lei nº 14.133/21 ainda seja necessária para que possa produzir efeitos, sobretudo, quanto à exigência de programas de integridade em contratações de grande vulto, espera-se que o caminho seja seguir a direção ofertada pelo Decreto nº 8.420/15, pela Portaria nº 909/15 da CGU [10] e demais orientações já consolidadas em âmbito nacional sobre o tema.
Cabe um alerta aos que ainda não compreenderam a importância do assunto: os programas de integridade podem ser obrigações impostas por leis (e até mesmo por atos regulamentares, quando dirigidos à forma de proceder da própria Administração), mas são também condição imposta pelas altas cúpulas do mundo corporativo e um valor caro à própria sociedade. A nova Lei Geral de Licitações é uma prova dessa valoração e difusão cultural, pois são inúmeras as vezes em que aparecem palavras-chave sobre o assunto como governança, integridade e ética. Isso demonstra uma tendência legislativa irreversível que deverá ser a tônica daqui para frente no cenário regulatório, tal e qual aconteceu com a sustentabilidade décadas atrás.
Na Lei nº 14.133/21, os programas de integridade, além de serem obrigatórios para as contratações de grande vulto, são: 1) critério de desempate (artigo 60, IV); 2) fator a ser considerado no momento de aplicação das sanções administrativas (artigo 156, §1º, V); e 3) condição para a reabilitação de licitante ou contratado, quando punidos por determinadas infrações (artigo 163, PU).
Por isso, pode-se afirmar que esses programas não são sofisticações restritas às grandes empresas, mas uma ferramenta de gestão consciente, que está preparada para enfrentar desafios que estão em sua porta. A atualização e antevisão sempre foram características dos grandes empreendedores e, segundo especialistas, a ética de trabalho implacável é atributo principal para o sucesso [11].
Ele pode ser um critério de desempate não só em relações contratuais decorrentes da NLGL, mas também nas de natureza civil e comercial, quando o adquirente de bens e serviços está focado na integridade da sua cadeia de fornecedores.
É importante lembrar que a introdução de políticas de anticorrupção no Brasil sofreu influência de organismos estrangeiros (ONU, OCDE) [12] e se mostra cada vez mais consistente no ambiente de negócios internacionais, como se percebe de recente inciativa [13] da ONU pela transparência e integridade, ao divulgar o Guia de Diretrizes para Implementação e Monitoramento de Ações Coletivas Anticorrupção do Pacto Global da Rede Brasil (que já conta com a adesão da Petrobras). Os ventos são para um novo ambiente, inclusive mais sadio concorrencialmente, quem sabe a corrupção no Brasil deixe de ser algo notório para se ter uma percepção de que está sendo efetivamente combatida.
[1] BRASIL. Decreto Federal nº 8.420, de 18 de março de 2015. Regulamenta a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira e dá outras providências. Brasil: Presidência da República, 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/decreto/d8420.htm> Acesso em 08 dez. 2021.
[2] PORTAL DA TRANPARÊNCIA. Governo Federal. [2021]. 1 Gráfico. Disponível em: https://transparencia.gov.br/sancoes/cnep?ordenarPor=nome&direcao=asc Acesso em 08 dez. 2021.
[3] ConJur. Lei 12.846/2013: 8 estados e 17 capitais ainda não regulamentaram Lei Anticorrupção. Revista Consultor Jurídico, 29 de agosto de 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-ago-29/estados-17-capitais-nao-regulamentaram-lei-anticorrupcao> Acesso em: 08 dez. 2021.
[4] DISTRITO FEDERAL. Lei Distrital nº 6112, de 02 de fevereiro de 2018. Dispõe sobre a implementação de Programa de Integridade em pessoas jurídicas que firmem relação contratual de qualquer natureza com a administração pública do Distrito Federal em todas as esferas de poder e dá outras providências. Distrito Federal: Câmara Legislativa, 2018. Disponível em: <https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=356400> Acesso em 08 dez. 2021.
[5] RIO DE JANEIRO. Lei Estadual nº 7753, de 17 de outubro de 2017. Dispõe sobre a instituição do programa de integridade nas empresas que contratarem com a administração pública do estado do rio de janeiro e dá outras providencias. Rio de Janeiro: Assembleia Legislativa, 32017. Disponível em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei.nsf/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/0b110d0140b3d479832581c3005b82ad?OpenDocument&Highlight=0,7753 Acesso em: 08 dez. 2021.
[6] RIO GRANDE DO SUL. Lei Estadual nº 15.228, de 25 de setembro de 2018. Dispõe sobre a aplicação, no âmbito da Administração Pública Estadual, da Lei Federal n.º 12.846, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências. Rio Grande do Sul: Assembleia Legislativa, 2018. Disponível em: http://www.al.rs.gov.br/legis/M010/M0100099.asp?Hid_Tipo=TEXTO&Hid_TodasNormas=64904&hTexto=&Hid_IDNorma=64904Acesso em: 08 dez. 2021.
[7] VILA VELHA. Lei Municipal nº 6.050, de 27 de agosto de 2018. Dispõe sobre a obrigatoriedade da implantação do programa de integridade (compliance) nas empresas que contratarem com a administração pública do município de vila velha, em todas esferas de poder, e dá outras providências. Vila Velha, ES: Prefeitura de Vila Velha, 2018. Disponível em: <https://www.vilavelha.es.gov.br/legislacao/Arquivo/Documents/legislacao/html/L60502018.html> Acesso em 08 dez. 2021.
[8] BRASIL. Lei nº 14.133/21, de 1º de abril de 2021. Dispõe sobre novas normas gerais de Licitações e Contratos com a Administração Pública em geral. Brasília, DF: Presidência da República, [1993]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm.> Acesso em 06 de out. de 2021.
[9] OLIVEIRA, Gustavo Justino; VENTURINI, Otavio. Programas de integridade na nova Lei de Licitações: parâmetros e desafios. Conjur, Revista Consultor Jurídico, jun. 2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-jun-06/publico-pragmatico-programas-integridade-lei-licitacoes> Acesso em 08 dez. 2021.
[10] BRASIL. Controladoria Geral da União. Portaria nº 909 da CGU, de 07 de abril de 2015. Dispõe sobre a avaliação de programas de integridade de pessoas jurídicas. Brasília: Controladoria Geral da União, 2015. Disponível em: <https://repositorio.cgu.gov.br/bitstream/1/34001/8/Portaria909_2015.PDF> Acesso em 08 dez. 2021.
[11] NEWFIELD, Jake. 10 Top Traits All Billionaire Entrepreneurs Have in Common. INC., [s.l.], abr. 2016. Seção de Finanças Pessoais. Disponível em: <https://www.inc.com/jake-newfield/the-10-traits-that-all-billionaires-have-in-common.html> Acesso em 08 dez. 2021.
[12] Após o escândalo Watergate, nos EUA, durante o governo Nixon, a exigência de um ambiente sem corrupção foi espalhada pelo mundo, até culminar com a Lei Anticorrupção brasileira, ainda que após severas advertências da ONU e OCDE.
[13] LEGIS COMPLIANCE. Pacto Global da ONU lança Movimento Transparência 100% e convida empresas para assumirem compromissos e metas anticorrupção, de 03 de dezembro de 2021. Disponível em: <https://www.legiscompliance.com.br/artigos-e-noticias/3386-pacto-global-da-onu-lanca-movimento-transparencia-100-e-convida-empresas-para-assumirem-compromissos-e-metas-anticorrupcao> Acesso em: 08 dez. 2021.