A palavra confusão induz a uma amálgama pernicioso, uma imprecisão para se definir as propriedades dos objetos sob análise, é quando há limitação para se compreender as dentições entre esses. Em relação aos aspectos regulatórios do ramo econômico da mineração, precisamos desfazer uma confusa mescla, principalmente no senso comum: a gestão do bem mineral (patrimônio da União) e o controle ambiental do empreendimento (tutela do bem ambiental, de uso comum do povo).
Com efeito, pode-se inferir que a terminologia da gestão mineral não ajuda muito. A exemplo, o regime de licenciamento [1] que pode induzir um estudante a erro, ao imediatamente imaginar, quando lê a legislação mineral, que se trata de um dos instrumentos da Política Nacional de Meio Ambiente, o licenciamento ambiental [2], quando não tem nada a ver.
Ou mesmo o termo “reserva”, que já induziu celebridades a um ativismo desavisado, como por exemplo, quando o Governo Temer resolveu pôr fim à Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca), uma área de 4 milhões de hectares, entre o Pará e Amapá, em plena Amazônia brasileira.
A repercussão foi grande e teve figura pública [3] manifestando sua contrariedade em se permitir a mineração em “áreas protegidas”.
Ocorre que, no caso específico da Renca, o termo “reserva” não remete à proteção ambiental, mas é uma restrição à pesquisa mineral, com fundamento no interessa nacional na mineração de determinada substância. Não tem nada a ver com o termo previsto no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc) [4].
Se o problema fosse só semântico, seria mais simples de se resolver, a dificuldade é que ele se espraia sobre a gestão administrativa, decisões políticas e controle externo. Trago alguns exemplos.
Inicialmente, o caso das anacrônicas Resoluções 09 e 10 (ambas de 1990), do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama).
Elas, basicamente, entrelaçam os procedimentos de licenciamento ambiental e de concessão mineral, que são ritos administrativos distintos, que tutelam bens jurídicos diferentes (novamente, bem mineral, patrimônio da União e bem ambiental, difuso e da coletividade) e que, na maioria das vezes não tramitam na mesma esfera federativa. Com efeito, essas normas foram concebidas num mundo pré-internet, quando não havia ferramentas de consulta processual acessíveis.
São enfoques que demandam expertises nitidamente díspares.
A propósito, já foi emitido o Parecer nº 502/2012/CGAJ/CONJUR/MMA da Advocacia Geral da União, decorrente de consulta do próprio Conama que, em síntese, entendeu que houve perda do objeto e dos efeitos dessas resoluções por conta da revogação da lei que previa a classificação de substâncias e jazidas minerais em que elas se baseavam, só que tais atos normativos não estariam expressamente revogadas.
Nada obstante o parecer, tais resoluções têm sim gerado efeitos, inclusive interfederativos, como no caso da Instrução Normativa nº 10, de 2020 [5], do Instituo Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Espírito Santo (Iema) que, ao disciplinar o licenciamento ambiental das atividades de mineração, levou em conta as Resoluções Conama 009 e 010 de 1990 e vinculou-se o procedimento de licenciamento ambiental às fases dos procedimentos de obtenção de título minerário perante a Agência Nacional de Mineração (ANM).
Por falar nessa IN capixaba, em que pese essa erronia, o que se diz com o máximo de respeito, ela trouxe alguns avanços regulamentares. Por sinal, um deles está sendo alvo de apuração por parte do Ministério Público Federal (MPF), através de inquérito civil, decorrente do Procedimento Preparatório nº 1.17.000.002709/2020-49, em trâmite na Procuradoria da República do Estado do Espírito Santo.
Explico, uma cidadã volutariosa denunciou ao MPF o expediente da Autorização Ambiental [6] (AA), que é uma forma de se estabelecer um mínimo de controle ambiental para a fase de pesquisa mineral.
Através da AA, se dá segurança ao minerador para fazer pequenas extrações minerais e com base em ato de controle ambiental expedido pelo órgão licenciador. Trata-se de medidas mitigadoras para intervenções não tão impactantes a ensejar uma licença ambiental. É fruto da experiência de gestão de recursos ambientais.
Ocorre que, como a AA estabelece prazo e limite volumétrico para a atividade, uma vez consultada pelo MPF, a ANM — opinando sobre ato administrativo de controle ambiental, portanto, fora de suas atribuições — explicou que não cabe a estado federado impor limites de volume e tempo para a pesquisa mineral.
O MPF, então, levado a erro, encaminhou pelo oficiamento ao órgão ambiental, determinando que esse revogasse o expediente que prevê a tal autorização ambiental. O que pode acontecer? O empreendedor que deseja basear sua pesquisa mineral em medidas sustentáveis, não contará mais com a segurança jurídica de um ato administrativo emitido pelo órgão ambiental. Pelo contrário, poderá agir sem amparo de ato administrativo que dê parâmetros para proteção ao meio ambiente.
Ao que tudo indica, a medida adotada pelo MPF leva a cauda a agitar o canino. Isso tudo, com base na manifestação do órgão que não detém a atribuição de controle ambiental (ANM) e, por falta de expertise, pode estar causando prejuízo a um bem difuso.
Em outra oportunidade, a ANM fez uma elogiável desassociação de gestão mineral e ambiental, ao desvincular a emissão de guia de utilização á licença ambiental (artigo 107 da Resolução ANM nº 37 de 2020) [7]. No caso, a resolução determina que a eficácia daquela está condicionada à emissão dessa.
Condicionar a eficácia do ato administrativo á emissão de outro é uma saída razoável. Por outro lado, esperar a emissão de ato de órgão de outra esfera, para que determinado órgão emita o de sua competência, é uma temeridade que, devido à escassez de servidores e demora nas análises, pode haver transcurso do prazo da licença sem emissão da guia, e vice-versa (esse também é o problema que as Resoluções Conama nºs 009 e 010 de 1990 podem gerar).
É óbvio que a atividade econômica da mineração depende de controle ambiental e ninguém seria insano de dizer algo contrário a isso. O que se deve deixar claro é que a competência da ANM não pode se confundir com as atribuições dos órgãos de controle ambiental, por muitas razões.
Que se deixe o meio ambiente para órgão que detém a especialidade, para o agente a que foi destinada a atribuição legal, da lei formal e constitucional, e que esse exerça em toda a sua plenitude, repita-se: aqui não se está defendendo retrocessos de proteção aos recursos naturais. O que não pode é esperar que a ANM o faça, destine seus parcos recursos a uma tutela que a lei ordinária não lhe atribuiu.
A ANM não integra o Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), não estando sujeita a limites e orientações específicas da Política Nacional de Meio Ambiente. Esse fato, além de representar uma descontextualização temática e política, gera uma insegurança administrativa, pois se espera de um gestor de um recurso mineral (eminentemente patrimonial — da União) tenha a expertise de gerir um bem jurídico de uso comum do povo, difuso, que não tem proprietário, o meio ambiente.
Quando um órgão de controle ambiental se ocupa com a gestão do bem mineral, ou quando a ANM se aventura em falar sobre sustentabilidade e medidas de mitigação de impacto ao meio ambiente em um empreendimento mineiro e pior, quando essas confusões ocorrem na regulamentação ou regulação, se perde energia no processo e se faz menos com recursos públicos escassos, o que sempre é dispendioso para a sociedade.
[1] Segundo o Código de Mineração (Decreto-Lei nº 227/1967):
Art. 2º. Os regimes de aproveitamento das substâncias minerais, para efeito deste Código, são:
[…]
III – regime de licenciamento, quando depender de licença expedida em obediência a regulamentos administrativos locais e de registro da licença no Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM;
[2] Segundo a Lei nº 6.938/1981:
Art 9º – São instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente:
[…]
IV – o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras;
[3] No G1, “Gisele critica decreto que extingue reserva florestal na Região Norte: ‘vergonha'”, em https://g1.globo.com/politica/noticia/gisele-critica-decreto-que-extingue-reserva-florestal-na-regiao-norte-vergonha.ghtml
[4] Para ilustrar, convém transcrever esse trecho da Lei nº 9.985/2000:
“Art. 10. A Reserva Biológica tem como objetivo a preservação integral da biota e demais atributos naturais existentes em seus limites, sem interferência humana direta ou modificações ambientais, excetuando-se as medidas de recuperação de seus ecossistemas alterados e as ações de manejo necessárias para recuperar e preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos ecológicos naturais”.
[5] Para acessar a IN: https://iema.es.gov.br/Media/iema/LICENCIAMENTO/Minera%C3%A7%C3%A3o/14.%20IN%20010-2020_Diretrizes%20para%20Licenciamento%20de%20Extra%C3%A7%C3%A3o%20Mineral_Publicada-19.08.20-1.pdf
[6] No texto: Art. 3º. O titular de direito minerário, detentor de Alvará de Pesquisa da ANM, que tenha interesse em retirar amostras para a realização de ensaios de beneficiamento dos minérios ou das substâncias minerais úteis, para obtenção de dados sobre as características tecnológicas, as condições de Viabilidade de mercado, e a qualidade deste bem mineral pesquisado, deverá obter Autorização Ambiental (AA) no Iema para esta finalidade.
[7] Em que pese essa redação esteja ameaçada de alteração, no contexto do Procedimento ANM nº 48051.002157/2021-33.