Por Victor Athayde e Johann Soares em 19/04/2023
A Agência Nacional de Mineração (ANM), criada pela Lei n° 13.575/2017, tem como algumas de suas finalidades a de promover a gestão dos recursos minerais da União, incluindo o controle e fiscalização das atividades destinadas ao aproveitamento de tais recursos.
Para tanto, a ANM (assim como todas as demais agências) goza do poder de polícia, como instrumento de fiscalização e coerção do regulado em caso de inobservância dos ditames legais e normativos existentes.
O poder de polícia, nesse deslinde, é ínsito à atividade administrativa e se traduz como um atributo conferido à Administração para regular e restringir determinados direitos ou atividades econômicas em detrimento do interesse público.
Como bem assevera Celso Antônio Bandeira de Mello [1], designa-se poder de polícia como sendo […] “a atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-as aos interesses coletivos” […].
Há, entretanto, uma questão sensível neste espectro do exercício do poder de polícia pela ANM: discernir até onde a agência pode regular algo sem invadir competência legislativa que não lhe é dada.
No plano da abstração, o princípio da legalidade exsurge como ponto nevrálgico e limitador do poder de polícia, já que impede que atos inferiores a Lei, por exemplo, inovem no ordenamento jurídico.
A questão, entretanto, é inferir no plano concreto, eventuais abusos e excessos cometidos pela ANM no exercício do seu poder de polícia.
Neste toar, Bandeira de Mello [2] estipula algumas condições objetivas para o exercício regular do poder de polícia e, entre elas, cita expressamente a necessidade de rigorosa consonância com a razoabilidade e proporcionalidade, de modo a reputar inválido todo o excesso praticado.
Ademais, o preceito da proporcionalidade, inclusive, é o plano de fundo do novel consequencialismo propugnado, na via administrativa, pelo artigo 20, caput [3] da Lindb (Decreto-Lei n° 4.657/1942), e até mesmo seu parágrafo único (que revela o dever de motivação).
Afinal, o dever de motivação estará observado quando o ato administrativo, considerando suas consequências práticas, impor medidas necessárias e adequadas à finalidade propugnada pela Administração Pública.
A razão de ser do princípio da proporcionalidade reside no excesso de poder, tendo como escopo manter o justo equilíbrio entre os meios empregados e a finalidade pública a que se destinam.
Ocorre, entretanto, que, embora venha exercendo a regulação de forma proativa, a ANM, ao que nos parece, extrapolou as balizas do seu poder de polícia ao editar a Resolução n° 122/2022.
A Resolução n° 122/2022 fora editada pela ANM e publicada em 1/12/2022, trazendo profundos impactos sobre o procedimento administrativo sancionador no âmbito do setor mineral.
A norma foi concebida com o escopo de regulamentar a apuração de infrações e disciplinar sanções e valores de multas em virtude do descumprimento de obrigações previstas na legislação mineral, visando, especialmente, aumentar a conformidade do setor com a legislação de regência (eis o poder de polícia).
Conquanto submetida ao Processo de Participação de Controle Social (PPCS), via audiência pública, a norma não foi precedida da devida Análise de Impacto Regulatória (AIR), como determina o artigo 6° [4] da Lei n° 13.848/2019 e artigo 3° [5] do Decreto n° 10.411/2020, sob o frágil e inadequado argumento (ante as peculiaridades do caso) de urgência na regulamentação sobre o tema.
O resultado foi a edição de uma Resolução que trouxe inúmeras preocupações para o setor mineral. Afinal, inobstante os aspectos jurídicos que envolvem a criação de infrações, a norma apresenta um significativa anacronismo entre a finalidade por ela almejada e os meios instituídos para tanto.
Inicialmente, o poder de polícia da ANM, quando da edição da norma, foi extrapolado pela inobservância o princípio da legalidade. Isto porque, o artigo 16 da Resolução atribuiu penalidade de suspensão (total ou parcial) a infrações que a Lei não previu.
Em que pese a penalidade de suspensão das atividades possuir previsão na legislação ordinária (artigo 63, VI do Decreto-lei 227/1967), a Lei não cuidou de disciplinar quais seriam as infrações sujeitas a essa penalidade o que, aliás, gera uma temerária discricionariedade ao agente e não permite uma vinculação jurídica de comando e controle (dever/infração x pena) que privilegiaria a individualização de condutas típicas.
Ora, as hipóteses de infração sujeitas a suspensão temporária previstas pela Resolução deveriam decorrer de lei em sentido formal, o que não ocorre nos casos dos regimes de autorização e concessão, norteados pelo Código de Mineração.
Soa uma inconformidade, pois no regime de aproveitamento mineral regido pela Lei n° 7.805/89 (permissão de lavra garimpeira), o legislador ordinário previu a hipótese de conduta antijurídica que implica em suspensão (artigo 18 [6]).
Por outro lado, a Resolução claramente ignora os limites da proporcionalidade.
Isto, pois, a norma busca tipificar e sancionar condutas que, em verdade, não representam qualquer tipo de impacto ou lesão a bem jurídico tutelado pela norma minerária. Em contrapartida, fixa critérios vagos, lacônicos e confusos que permitem a fixação de penalidade de multa, por exemplo, em patamares suntuosos e absolutamente incompatíveis com a infração prevista.
Tem-se que uma infração por lavrar a jazida em desacordo com o Plano de Aproveitamento Econômico (PAE) ou de deixar de apresentar um mero extrato de inspeção regular permitirá a ANM imputar ao minerador uma sanção de multa (considerando as possíveis variáveis de cada caso) no valor de R$ 150.875.000 e R$ 22.781.250, respectivamente.
O princípio da proporcionalidade fora claramente ignorado pela resolução.
Não há dúvidas de que a ANM claramente extrapolou os limites do seu poder de polícia ao editar a Resolução n° 102/2022 da maneira como foi feita, sobretudo ao ultrajar os princípios da legalidade e proporcionalidade.
E tais ilegalidades, inclusive, atentam contra a nova perspectiva regulatória propugnada pela Lei de Liberdade Econômica (Lei n° 13.874/19), já que configuram claro açoite ao princípio da Intervenção Subsidiária do Regulador, previsto no artigo 2°, III [7] da Lei n° 13.874/19, além de manifesto abuso regulatório, na forma do artigo 4°, II [8] e artigo 4°-A, II [9], ambos da referida Lei.
Como reflexo a toda a manifestação do setor minerário, a ANM realizou recentemente a Tomada de Subsídios n° 2/2022, com objetivo de angariar contribuições e aprimorar a redação da Resolução n° 122/2022.
Portanto, é importante o acompanhamento desse processo de lapidação da Resolução n° 122/2022 iniciado pela ANM, em virtude dos graves excessos cometidas pela norma e o inequívoco abuso regulatório e do poder de polícia da Agência, com o devido e necessário constrangimento epistemológico da comunidade jurídica em prol de uma norma equânime e condizente com as especificidades do setor.
[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 29. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012. p. 838.
[2] ___________. p. 843-844.
[3] Artigo 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
[4] Artigo 6º A adoção e as propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados serão, nos termos de regulamento, precedidas da realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR), que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo.
[5] Artigo 3º A edição, a alteração ou a revogação de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, por órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional será precedida de AIR.
[6] Artigo 18. Os trabalhos de pesquisa ou lavra que causarem danos ao meio ambiente são passíveis de suspensão temporária ou definitiva, de acordo com parecer do órgão ambiental competente.
[7] Artigo 2º São princípios que norteiam o disposto nesta Lei:
[…]
III – a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas;
[8] Artigo 4º É dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam a esta Lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta Lei versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente:
[…]
II – redigir enunciados que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado;
[9] Artigo 4º-A É dever da administração pública e das demais entidades que se sujeitam a esta Lei, na aplicação da ordenação pública sobre atividades econômicas privadas:
[…]
II – proceder à lavratura de autos de infração ou aplicar sanções com base em termos subjetivos ou abstratos somente quando estes forem propriamente regulamentados por meio de critérios claros, objetivos e previsíveis;