Por Victor Athayde, Johann Soares e João Pedro Riff Goulart em 20/09/2023
O modelo da Constituição Federal de 1988, ao consagrar o acesso à Justiça como garantia fundamental, trouxe uma consequência reflexa inevitável: o assoberbamento do Poder Judiciário[1]. Já é consenso que isso gera insegurança jurídica, especialmente, por exemplo, diante de inúmeras decisões conflitantes sobre o mesmo assunto.
O quadro também fragiliza a própria organização judiciária, que está em níveis medianos de confiança, o que é pernicioso para o próprio Estado democrático de Direito. Soma-se isso à cultura da sentença, que é a mentalidade dos brasileiros de enxergarem no comando jurisdicional a única forma de ver o litígio solucionado, como apontam autores como Trícia Navarro Xavier Cabral e Kazuo Watanabe.
Embora o legislador busque mitigar essa realidade através de institutos processuais (súmula vinculante, IRDR, IAC etc.), que se assemelham à padronização de entendimento jurisprudencial típica da common law, é essencial que conflitos regulatórios (entre agentes regulados, primordialmente) possam ser resolvidos para além do Poder Judiciário, pois a segurança jurídica é cara para esse tema e é necessário especial cuidado na relação entre privado e público, em razão das consequências práticas de determinado equívoco na execução de serviços públicos concedidos e mesmo atividades de utilidade pública (art. 21, da LINDB), como é o caso da mineração.
Esse papel de resolução de conflitos aparece nas atribuições de diversas agências, desde os anos 1990[2]. Uma tendência que amplia o conceito de acesso à Justiça, não limitando ao acesso do Poder Judiciário, mas a uma decisão justa, por órgão legalmente constituído.
Nesse momento, a função judicante das agências reguladoras ganha relevância, pois tais entidades podem solucionar contendas entre atores importantes para determinado mercado regulado, reduzindo, assim, o passivo do Poder Judiciário e solucionando mais adequadamente conflitos que, por vezes, são altamente locais (i.e., a decisão mais razoável demanda proximidade com a contenda, o que o Poder Judiciário dificilmente poderia ofertar).
Afinal, as agências reguladoras são instituições eminentemente técnicas, dotadas de inegável expertise e conhecimento profundo sobre as minúcias do setor ou atividade por ela regulado, o que, inequivocamente, permite a resolução de conflitos mediante decisão estritamente técnica, com soluções efetivamente aptas a pacificar a controvérsia, ao passo que aquelas exaradas pelo Poder Judiciário, em grande parte, mantém um distanciamento técnico das peculiaridades daquele mercado.
Neste contexto, facilmente se verifica da Lei 13.848/19 que cabe às agências reguladoras exercerem competências “arbitrais” (art. 34) e, desse modo, consolidar através de suas normativas como exercerão o dever de solucionar conflitos regulatórios.
Como é o caso da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), que desde 2002 está comissionada a arbitrar conflitos (Decreto 4.122/02) e, recentemente, editou a Resolução 98/2023 prevendo a possibilidade de resolver os conflitos regulatórios de sua alçada através de figuras típicas como a mediação e a arbitragem (art. 8º)[3].
Inclusive, forçoso registrar uma interessante peculiaridade presente na atuação da Antaq nos conflitos regulatórios, prevista na Resolução 98/2023. Isto porque, segundo o art. 36, parágrafo único[4], a arbitragem regulatória conduzida pela agência pode ser instaurada mediante pedido unilateral, o que esboça uma perspectiva distinta em relação à Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996).
Isto é, pelos ditames da Lei de Arbitragem, o conflito será submetido à arbitragem quando houver cláusula pré-existente no pacto objeto da controvérsia ou mediante termo de compromisso arbitral (art. 2° e 9°, da Lei n° 9.307/1996), o que pressupõe uma bilateralidade — manifestação de vontade por ambas as partes — necessária para submissão à arbitragem.
Ocorre que, de maneira inovadora, a Resolução 98/2023 passa a permitir que os conflitos regulatórios perante a Antaq possam ser instaurados mediante pedido unilateral, o que confirma uma natureza sui generis da arbitragem promovida pela agência.
Isso permite que uma das partes, em detrimento da outra, possa buscar um canal apropriado de diálogo junto à agência reguladora, quando a parte contrária se mostrar recalcitrante em tentar solucionar o problema.
Neste toar, essa medida claramente traz mais uma possibilidade, dentre as já existentes, de solução alternativa do conflito, criando um novo instituto jurídico, diferente da arbitragem da própria Lei de Arbitragem.
Aliás, nota-se que a função judicante está consignada inclusive no art. 29, §2º, da Lei 13.848/19 e, desse modo, as agências reguladoras também estão autorizadas legalmente a elaborarem atos normativos conjuntos prevendo mecanismos de solução de controvérsias, podendo admitir, por exemplo, solução mediante mediação, nos termos da Lei de Mediação (Lei 13.140/15), ou arbitragem por meio de comissão integrada. Veja, o silencia deve ser interpretado. Se a medição das agências deve seguir a Lei de Mediação, a norma não prevê que as agências se enquadrem na Lei de Arbitragem, o que faz concluir tratar-se de institutos diversos.
Com base nesse dispositivo, em 2020, foi recriada a Comissão de Resolução de Conflitos das Agências Reguladoras dos Setores de Energia Elétrica, Telecomunicações e Petróleo e determinados conflitos regulatórios podem ser decididos por esta via alternativa, escoando o passivo do Poder Judiciário (Resolução Conjunta 3/20).
Nessa linha intelectiva, segundo os autores Sérgio Guerra e Rafael Véras, na dinâmica dessa regulação judicante, verifica-se que as agências reguladoras têm um papel decisório na solução de conflitos de sua alçada, pois podem aproximar os litigantes e contribuir para a autocomposição, demonstrando os benefícios de solução consensual, ou, inclusive, dar cabo de determinada contenda com mais propriedade e aptidão técnica, de forma impositiva.
Há de se ter cautela, pois no Brasil não há uma corte administrativa, como existe na França (dualidade de jurisdição), e existe um insolúvel conflito de interesse no contencioso administrativo submetido ao arbítrio do próprio ente público envolvido na lide. Por exemplo, o envolvimento da União em conflitos de agências federais.
Também é importante outros casos que poderiam ser resolvidas pelas próprias agências reguladoras, como quando servidões administrativas são inseridas em propriedades privadas para a viabilização de determinado serviço público concedido, mas que não observaram o devido processo legal (decreto de utilidade pública e tratativas prévias com o proprietário ou possuidor etc.).
Nesses casos, o particular pode ter sua propriedade privada limitada de uma forma que a mera indenização não seja a alternativa adequada e haja riscos na intervenção pública para prestação de serviços regulados como água, esgoto, luz, que dependem de instalações sujeitas à manutenção ou reparo e devem ser instaladas com inteligência e em locais seguros. Especialmente quando a área serviente for utilizada para atividades de utilidade pública como a mineração, por exemplo.
Assim, os interesses dos privados prejudicados poderiam ser levados às agências reguladoras para solução mais célere e eficaz, com base na função judicante, evitando-se mais contencioso judicial.
Em suma, cabe às agências reguladoras fazerem uso de sua função fiscalizatória (art. 17, da Lei 13.848/19 e art. 174, da CRFB) e, quando exercerem a função judicante, devem estabelecer uma relação isonômica entre os demandantes de modo que haja um ambiente propício para a autocomposição (evitando-se risco de captura por qualquer dos agentes) ou, em último caso, decidindo-se a lide com mais expertise e proximidade com as sutilezas do caso, do que o Poder Judiciário poderia fazer.
É importante destacar que, muito embora as agências reguladoras possam atuar na redução de demandas regulatórias a serem judicializadas, em razão da garantia constitucional da inafastabilidade de jurisdição (art. 5º, XXXV, da CRFB), a sua intervenção, em regra, não implica necessariamente em assegurar a Política Pública de desjudicialização, mas a sua decisão técnica pode ser um desencorajamento a aventuras judiciais.
[1] Segundo o Justiça em Números 2023 do CNJ, há um incremento de 10% de ações ajuizadas em 2022, comparando com 2021.
[2] Vide as atribuições da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL); da Agência Nacional de Petróleo (ANP); da Agência Nacional de Mineração (ANM) e das Agências Nacionais de Regulação dos Transportes Terrestre e Aquaviário (ANTT e ANTAQ). Todas sempre detiveram a competência para a solução de conflitos.
[3] Art. 8º Os procedimentos de resolução de conflitos conduzidos pela ANTAQ de que trata esta Resolução são: I – a mediação em serviços portuários e de navegação; II – a mediação no afretamento de embarcações; e III – a arbitragem regulatória em serviços portuários e de navegação.
[4] Art. 36. A arbitragem regulatória consiste em processo administrativo baseado na Lei nº 9.784 , de 29 de janeiro de 1999, para solução de conflitos no setor regulado, cuja decisão compete à Diretoria Colegiada da ANTAQ, envolvendo a aplicação de leis, normas e contratos públicos, bem como os contratos privados celebrados nos termos do art 5º-A da Lei nº 12.815, de 5 de junho de 2013.
Parágrafo único. A arbitragem regulatória conduzida pela ANTAQ será gratuita e poderá ser instaurada por meio de pedido unilateral ou acordo expresso entre as partes.