Por Victor Athayde em 07/02/2024
A retomada de um processo de industrialização no país demandará também mudança de cultura na gestão mineral que propicie celeridade nos procedimentos.
No dia 22 de janeiro de 2024, o Governo Federal lançou o programa Nova Indústria Brasil (NIB), que visa trazer estímulos para que o país retome o caminho de fortalecimento da indústria nacional, uma vez que “é chave para o desenvolvimento sustentável”, e isso passa pela retomada da confiança dos agentes privados e superação dos entraves ao desenvolvimento, segundo consta do texto divulgado.
Entre os princípios do NIB estão o incremento da produtividade, da competitividade e a sustentabilidade, que se basearão em instrumentos financeiros e não financeiros e, entre esses últimos, se vê a regulação, primando pela redução das ineficiências regulatórias do país.
As compras públicas e as obras de infraestrutura também estão entre os instrumentos de fomento à NIB e, nesse contexto, podemos perceber um preocupante cenário vindouro relacionado à mineração (pouco citada no texto de apresentação do NIB[1], aliás), mas que pode ser prontamente corrigido sem maiores esforços políticos.
O programa considera um desafio para a meta de ampliação da infraestrutura o de “incentivar a agregação de valor sobre recursos minerais no país”, mas foca predominantemente em minerais estratégicos[2], e não nos associados à construção civil, umbilicalmente ligados ao incremento de portos, aeroportos, casas populares, vias urbanas e rodovias e, portanto, tanto ao programa NIB, quanto ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
A mineração é um setor relevante e é base para a economia do país, está direta ou indireta em praticamente todos os setores produtivos e bens de consumo, tanto que é reconhecidamente de utilidade pública e interesse nacional, conforme expresso no art. 2°, I e II[3] do Regulamento ao Código de Mineração (Decreto n° 9.406/2018).
Entretanto, há dados que revelam a extrema lentidão de procedimentos para obtenção do direito de exploração mineral (que é um bem da União, e é gerido pela ANM), principalmente nos regimes de autorização e concessão, podendo chegar a cerca de uma década até a decisão final para a publicação de uma portaria de lavra, o que representa um entrave ao desenvolvimento, que deve ser superado, e gera desconfiança dos agentes privados na tomada de decisão do investimento (justamente quadros que o NIB se propõe a mudar).
As normas jurídicas minerárias preveem um expediente onde minerador pode explorar o bem mineral antes da concessão da lavra, que se chama Guia de Utilização (GU). O ordenamento jurídico se refere à GU como algo excepcional, entretanto, a dinâmica dos mercados e, principalmente, o sucateamento do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), substituído pela ANM (que ainda enfrenta severos problemas de recursos humanos e orçamentários), fizeram desse ato administrativo uma solução para que o investimento na mineração (e geração de renda e empregos) se desenvolvesse nas últimas décadas.
Só no ano de 2020 foram emitidas mais de mil guias de utilização[4], enquanto foram 527 Portarias de Lavra[5]. Portanto, é de se presumir que muitas das frentes de lavra em operação no Brasil operam com base em GU.
Ocorre que, no Governo Temer, foi publicado o citado Regulamento do Código de Mineração, onde foi limitada as emissões das GU, estipulando que deveriam ter prazos de um a três anos, sendo permitida uma única prorrogação[6], antes do Decreto, não havia essa limitação e ela passou a ser considerada a partir da publicação da Resolução ANM nº 37/2020.
Então, diante das perspectivas criadas pelo texto do programa NIB, permita-se conjecturar alguns cenários.
Primeiro, se após a Resolução ANM nº 37/2020 há a limitação de um prazo (no melhor dos cenários) de seis anos para as GU emitidas, isso significa que até 2026 muitas frentes de lavra estarão na iminência de paralização por falta de ato administrativo autorizativo. Inclusive, isso pode estar acontecendo agora, caso o prazo estabelecido na GU seja de dois anos e, considerando ainda a histórica demora na publicação de portarias de lavra.
Esse cenário é de extrema insegurança para o investimento, para a manutenção de empregos e ainda, caso o mineral esteja na pauta de exportação, uma ameaça à diversificação nas vendas internacionais. Há aí uma nítida falha regulatória, o que vai de encontro aos preceitos do NIB.
Em segundo lugar, esse quadro é uma temeridade do ponto de vista da sustentabilidade ambiental pois, caso uma lavra tenha que ser paralisada pela falta de GU, interromperia o fornecimento de bens minerais vinculados às obras do PAC, por exemplo, e seria preciso que outra frente de lavra fosse aberta, o que representaria um novo licenciamento ambiental, com gastos de recursos humanos dos órgãos ambientais e o consumo de recursos naturais de outras origens, enquanto uma outra frente deverá estar sem operação, quando, tecnicamente, poderia estar em plena atividade.
Enfim, os agentes regulados podem imaginar outras nefastas consequências práticas (consequencialismo) dos efeitos dessa limitação temporal das GU.
É claro que o procedimento de inspeção acreditada pode vir a diminuir o tempo de tramitação de procedimento minerários, entretanto, para que isso se concretize, é necessária uma mudança de cultura de grande parte do corpo técnico da ANM para se adaptar a esses novos instrumentos.
Antes disso, seria necessário que se entendesse as GU não como uma excepcionalidade ou uma burla, mas como uma solução para as pequenas e médias empresas mineradoras, que se pare de encarar o bem mineral como uma vaca sagrada, mas como um patrimônio que pode ser concedido por atos administrativos de emissão mais expedita, como a GU, mas sem limitações desarrazoadas de prazos, que não observam as consequências socioeconômicas disso, portanto, há de se revogar o parágrafo único do art. 24 do Decreto n° 9.406/2018, sob pena de impactar negativamente a neoindustrialização pretendida para o Brasil
Victor Athayde Silva é sócio do escritório David & Athayde Advogados, mestre pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos e realiza consultoria em Direito Administrativo, Integridade Corporativa, Licitações, Contratos Administrativos, Ambiental, Minerário e Urbanístico.
[1] O texto do programa fala em “recomposição da força de trabalho de agências reguladoras”, mas sequer cita a Agência Nacional de Mineração (ANM), embora cite outras agências.
[2] Há uma classificação para tanto, vide: https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/conheca-os-minerais-estrategicos-e-como-eles-fazem-parte-do-seu-dia-a-dia
[3] Art. 2º São fundamentos para o desenvolvimento da mineração:
I – o interesse nacional; e
II – a utilidade pública.
[4] Segundo a ANM, em https://www.gov.br/anm/pt-br/centrais-de-conteudo/mineracao-em-numeros/copy_of_estatisticas/guias-de-utilizacao/guias-de-utilizacao-autorizadas-por-gerencias-regionais-2020
[5] A ANM informa, em https://www.gov.br/anm/pt-br/centrais-de-conteudo/mineracao-em-numeros/copy_of_estatisticas/atos-publicados/estatisticas-dos-atos-publicados-no-d-o-u-2020
[6] Art. 24. É admitida, em caráter excepcional, a extração de substâncias minerais em área titulada anteriormente à outorga da concessão de lavra por meio de autorização prévia da ANM, denominada guia de utilização, observada a legislação ambiental pertinente. (Redação dada Pelo Decreto nº 10.965, de 2022)
Parágrafo único. A autorização a que se refere o caput será emitida uma vez, pelo prazo de um a três anos, admitida uma prorrogação por até igual período, conforme as particularidades da substância mineral, nos termos de Resolução da ANM.