Por Victor Athayde e Johann Soares em 04/10/2024
A Constituição Federal de 1988 conferiu ao meio ambiente o tratamento de bem jurídico fundamental, tanto que em seu art. 225 se prevê o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito difuso e impõe um dever geral de proteção não apenas ao Poder Público, mas a própria coletividade.
Essa perspectiva substancialista passou a conduzir a gestão das políticas públicas e a normatização do direito infraconstitucional a partir dos ditames constitucionais, como ocorre com as Resoluções editadas pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA.
Por exemplo, na ADI 3074/DF, o STF inadmitiu ação que impugnava Resolução do CONAMA sob o argumento de que se tratava de ato normativo regulamentar, com natureza secundária e cujo parâmetro reside na Lei que se está regulamentando, e não na Constituição.
Ocorre que, conquanto esteja alicerçada em instrumento de controle de constitucionalidade distinto, o STF demonstrou com a ADPF n° 749 que as Resoluções editadas pelo CONAMA, por versarem sobre matéria ambiental, retiram seu alicerce normativo no próprio texto constitucional, corroborando o meio ambiente como direito fundamental.
Eis excerto do voto da Relatora, Ministra Rosa Weber, proferido no bojo da ADPF n° 749:
[…] As Resoluções editadas pelo órgão preservam a sua legitimidade quando cumprem o conteúdo material da Constituição e da legislação ambiental. A preservação da ordem constitucional vigente de proteção do meio ambiente impõe-se, pois, como limite substantivo ao agir administrativo. […] (ADPF n° 749, Rel. Rosa Weber, julgado em 14.12.2021). (g.n.)
A pretexto de transformar o meio ambiente como direito fundamental intangível, tem-se feito uma leitura desvirtuada do entendimento exarado pelo STF no julgamento da referida ADPF.
Isto porque, em verdade, a manutenção da vigência da Resolução n° 303/2002 se deu em virtude da Resolução n° 500/2020, que a revogara, e por essa não ter estabelecido outra norma de igual envergadura, esbarraria no princípio da vedação à proteção deficiente.
[…] A supressão de marcos regulatórios ambientais, procedimento que não se confunde com a sua atualização e ajustes necessários, configura quadro normativo de retrocesso no campo da proteção e defesa do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput, da CF) e, consequentemente, dos direitos fundamentais à vida (art. 5º, caput, da CF) e à saúde (art. 6º da CF), a ponto de provocar a impressão da ocorrência de efetivo desmonte da estrutura estatal de prevenção e reparação dos danos à integridade do patrimônio ambiental comum.. […] (ADPF n° 749, Rel. Rosa Weber, julgado em 14.12.2021) (g.n.)
Porém, considerando que a Resolução CONAMA n° 303/2002[1] traz parâmetros mais abrangentes para definição de Áreas de Preservação Permanente – APP, o STF também deixa claro que a atuação do Poder Público nesse mister (proteção de áreas especiais) tem por escopo (finalidade) a manutenção da integridade dos atributos ecológicos que venham justificar a proteção específica desses espaços.
[…] 8. Embora dotado o órgão de considerável autonomia, a medida da competência normativa em que investido o CONAMA é, em face da primazia do princípio da legalidade, aquela perfeitamente especificada nas leis – atos do Parlamento – de regência. […]
[…] Ao estabelecer parâmetros normativos definidores de áreas protegidas, o Poder Público está vinculado a fazê-lo de modo a manter a integridade dos atributos ecológicos que justificam a proteção desses espaços territoriais. A atuação positiva do Estado decorre do direito posto, não havendo espaço, em tema de direito fundamental, para atuação discricionária e voluntarista da Administração, sob pena, inclusive, em determinados casos, de responsabilização pessoal do agente público responsável pelo ato, a teor do art. 11, I, da Lei nº 8.429/1992. […]
Ao fixar parâmetros mínimos de proteção de um direito fundamental, a Lei nº 12.651/2012 não impede que as autoridades administrativas ambientais, mediante avaliação técnica, prevejam critérios mais protetivos. (ADPF n° 749, Rel. Rosa Weber, julgado em 14.12.2021) (g.n.)
Em síntese, o que se denota é a premissa de que, conquanto exista fundamento constitucional na Resolução CONAMA n° 303/2002, pois atrelada à preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, à atuação dos Órgãos Ambientais, especialmente quando no exercício do seu poder de polícia repressivo, está intimamente associado à proteção de áreas que, de fato, gozem de função ambiental que lhe qualifique como APP, cujas restrições devem ser precedidas de avaliação técnica, nos moldes do que elucida o Código Florestal (Lei n° 12.651/2012).
Isto é, a atuação do Poder Público na tutela do meio ambiente deve recair sobre áreas que, de fato, possuam atributos especiais que justifiquem sua proteção, sob pena de mitigar indevidamente, por exemplo, o direito de propriedade sobre áreas sem qualquer função ambiental.
A respeito disso, o Código Florestal exige em seu art. 3°, II[2], como condition sine qua non para configuração de uma APP, a existência inequívoca de função ambiental.
Não basta, portanto, que ocorra mera subsunção do caso concreto à definição objetiva do que a Resolução n° 303/2002 contempla como APP, sob pena de transformar o Órgão Ambiental em mero autômato da norma jurídica.
É imprescindível que, no caso concreto, o Órgão, mediante avaliação técnica, conclua que a área a receber eventual tutela ambiental possua alguma das funções ambientais previstas, notadamente, no Código Florestal.
Portanto, é preciso compreender que a ADPF n° 749 decidida pelo STF não outorgou ao meio ambiente o status de direito fundamental absoluto. A hermenêutica que se pode inferir de sua ratio decidendi, associada às diretrizes do Código Florestal, é de que a definição de APP exige avaliação técnica pelo Órgão responsável apontando que, considerando os elementos do caso concreto, o espaço territorial possui atributos ecológicos previstos em Lei que justifiquem uma proteção ambiental especial.
Do contrário, na ausência de fatores que demonstrem a presença de função ambiental, conforme preconizado pelo Código Florestal, qualquer restrição imposta ao exercício do direito de propriedade revela-se manifestamente ilegal e abusivo, e mais grave: fazer prevalecer Resolução em detrimento de lei ordinária (Código Florestal), é macular o Estado Democrático de Direito, instituição que jamais poderia ser alijada em atos da Administração e da Jurisdição, inclusive sob o espectro da sustentabilidade, previsto no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nº 16[3].
[1] Dispõe sobre parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente.
[2] Art. 3º Para os efeitos desta Lei, entende-se por:
[…]
II – Área de Preservação Permanente – APP: área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas; (g.n)
[3] Objetivo 16. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.
[…]
16.3 Promover o Estado de Direito, em nível nacional e internacional, e garantir a igualdade de acesso à justiça para todos